segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Um novo livro






E assim nasceu esta vontade, mais, esta necessidade de escrever um livro... ganhei coragem, tomei balanço e cá este ele, a crescer... espero que gostem!

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Sobre: Sem Título

Toda a gente esconde o seu demónio... mas ele observa-nos. Sempre! Até se libertar...

O meu livro - Sem Título (ainda)

Fazia já trinta e dois anos que Francisco tinha alugado o quartinho dos fundos à D. Lucília. Mulher de porte altivo e posses herdadas de seu defunto marido, que Deus o tenha lá em descanso.

Era um quarto simples.
Tinha apenas uma cama de solteiro de ferro branco, a colcha tinha sido feita pela sua avó, e era das poucas coisas que ainda lhe restavam da família… um roupeiro já antigo de portas empenadas feito de mogno dos bons, como já não se fazem, com o espelho manchado pela humidade. Tinha também uns reposteiros de veludo verde-escuro puídos pelo tempo e um tapete coçado sobre o qual repousavam as suas pantufas sempre perfeitamente alinhadas com o rebordo da cama. Por cima da cama um crucifixo, e por baixo do travesseiro um revólver. Ao lado, na mesinha de cabeceira, guardava os remédios para todas as suas maleitas, a bíblia e um baralho de cartas. O candeeiro com abat-jour de vidro era a sua companhia nas noites de insónia. Normalmente coincidiam nas noites em que Alfredo visitava a senhoria e os dois se entregavam aos pecados da carne. Tal era a violência e veemência das interjeições articuladas a custo e entre gritos e gemidos e golfadas de ar que, nessas alturas ninguém dormia naquele prédio da rua estreitinha ali em Campolide. Sobejamente conhecida pelas suas “quenturas” Lucília não se importava nada com os comentários jocosos dos vizinhos… era mulher, era nova, era viúva, tinha desejos e não devia nada a ninguém. E o Alfredo até dava conta do recado. Sem compromissos.
Quando parava a pensar nele, Lucília estranhava o seu hóspede. Nunca dizia uma palavra a mais do que o necessário. Bom dia menina Lucília, Até amanhã menina Lucília, o seu bolo de tangerina está um primor menina Lucília. Funcionário público, sempre muito correcto, muito polido e educado, todas as manhãs lia o jornal com uma ávida atenção que não lhe permitia ouvir mais nada. Nunca se lhe conheceu família, namoradas, amigos ou até mesmo colegas de trabalho… Quando não estava na repartição estava no seu quarto a jogar paciência ou a ler. Lia todos os jornais. Os Natais, passava-os ali, sozinho ou na companhia de Lucília que, por piedade, lá cozia uma posta de bacalhau e umas batatas a mais, fazia um pão-de-ló e aquecia um pouco de vinho tinto com canela… e assim passavam o serão, junto ao aquecedor, os três: ela, ele e o silêncio que já se instalara entre eles havia anos. No entanto, todas as noites, pelo seu aniversário Francisco nunca ficava no seu quarto. Saía, misteriosamente, depois do jantar, com a barba feita de fresco e um intenso cheiro a colónia. Ia às meninas do intendente, e Lucília sabia-o. Já o tinha seguido. Mas isso era lá com ele, afinal um homem também tem as suas necessidades.
O problema era sempre o regresso ao outro dia de manhã...

O meu livro - Sem Título (ainda) II

Toda a gente na rua estreita em Campolide conhecia a menina Lucília. De ancas largas, decote generoso e lábio carnudos, toda ela transpirava volúpia e a Francisco isso não passava despercebido. Só pensava nela. Todos os dias, todo o dia. Era obsessiva esta necessidade que Francisco tinha de estar perto dela. Mesmo sabendo que nunca lhe tocaria. O facto de saber que ela estava ali era suficiente para o amor que acalentava secretamente. Alfredo era o seu homem e ele sabia-o. Não o incomodava, acomodara-se a essa realidade. Ele fazia-a feliz e isso bastava-lhe. Duas noites por semana Alfredo lá ia a casa visitar a sua “Patroa de Campolide". Nessas noites o jantar era servido mais cedo para que o nosso homem se recolhesse. Só se tinham encontrado em casa uma vez… Alfredo alegre e jovial, de bigode fininho e perfeitamente aparado, cheiro a colónia barata, camisa florida, peito aberto, fio de ouro com crucifixo ao pescoço. - Francisco depreendia por isso que seria católico e perguntava-se quando pensava ele casar com Lucília, afinal aquelas noites de pecado tinham de ser provisórias – Sapatos imaculadamente engraxados e os tiques de quem sabe tudo sobre tudo… Piscara-lhe o olho, uma pancada forte nas costas – Oh Francisco, agora vai lá cuidar da tua vidinha que eu vou dar o tratamento à patroa. – Desde essa noite, o nosso homem recolhia-se sempre antes do galã de Campolide chegar. Não apreciava a sua linguagem brejeira. Sentava-se na sua cama, pegava no seu revólver e limpava-o, uma e outra e outra vez e perguntava-se quando teria finalmente coragem de fazer aquilo a que se tinha proposto…

O meu Livro - Sem Título (ainda) III

As suas idas ao intendente deixavam-no angustiado. Chegava a casa transtornado, a mente fixa, o olhar desconfiado, vidrado. Suspeitava de todos… Andavam a segui-lo, tinha a certeza. Confirmava sempre se o seu revólver estava como o deixara. Um dia iriam descobri-lo e aí é que havia de ser o bonito. O que diria o Dr. Araújo? – Bom, efectivamente, sobre o Francisco não há muito a dizer, Sr. Agente. Ele mantinha um comportamento profissional exemplar, de uma pontualidade britânica, não fazia amizades mas também não era antipático. Pelo contrário, sempre foi muito correcto, respeitador, zeloso e cumpridor. Com quem? Não! Não mantinha amizades com ninguém que eu conheça. – E a Celina? – Ah …nunca pensei, então mas ele trabalhava aqui mesmo ao meu lado… nunca, nunca suspeitei de nada… parece impossível! – Um dia iriam descobri-lo e aí a menina Lucília não iria perdoá-lo, iria expulsá-lo… afinal, ela era uma senhora de bem, não permitiria ver o seu hóspede ali, naqueles preparos no intendente.
Todas as manhãs, o ritual era o mesmo. E era mesmo um ritual. Levantava-se, enfiava os pés nos seus chinelos perfeitamente alinhados com o rebordo da cama, bebia um copo com água, tomava banho em não mais de sete minutos, lavava os dentes, vestia-se, em precisamente, três minutos – umas calças de fazenda, uma camisa branca e um colete. No Inverno vestia o sobretudo – Fazia a cama e saía para a sala. O pequeno-almoço já estava servido e os jornais em cima da mesa. Todos os jornais empilhados em cima da mesa. Francisco pagava um extra generoso por estes mimos – Bebia então a sua chávena de café com leite, comia uma carcaça com manteiga, uma fatia de bolo de tangerina e acabava com um sumo de laranja – por causa da gripe – Procurava “a notícia”. NADA! Um dia iriam apanhá-lo no intendente. –

O meu livro - Sem Título (ainda) IV

Depois saía, apanhava o autocarro até ao seu trabalho que ficava a um quarteirão da paragem. Pelo que, andava todos os dias a pé, precisamente, dezasseis minutos. Oito de manhã e oito à tarde. Entrava na repartição, todos os dias, impreterivelmente à mesma hora: 08:57minutos Bom dia Dr. Araújo! Olá Bom dia Celina. E não emitia nem mais uma palavra, a menos as estritamente necessárias. Sentava-se à sua antiga secretária de madeira, milimetricamente arrumada, e dedicava-se ao seu trabalho que realizava com uma precisão de relojoeiro. Mas o seu pensamento nunca estava ali. Saltava, constantemente, entre a sua menina Lucília, o seu revólver e a sua notícia que não saía… um dia iriam apanhá-lo, e aí é que ía ser o bonito… tinha o seu revólver, tinha de fazer algo, e a menina Lucília? Ela não sabia. Não tinha como. Mergulhado nos seus pensamentos deixou escapar em voz alta – Pobrezinha! Enganada dessa maneira... – Celina olhou atónita para ele… pensou que era para si… não se conteve – Desculpe lá Sr. Francisco, não é que lhe diga respeito. Mas eu não sou pobrezinha nenhuma. Ele vai deixar a mulher e vai casar comigo. E se pensa que o faço pela promoção. Desengane-se, não preciso. Nós amamo-nos mesmo! – O nosso homem não percebeu nada daquela conversa, tinha o seu cérebro noutro mundo pensou que ela estava com as regras. E já se sabe, quando as mulheres estão assim é de nunca as contrariar. Isso, ele sabia. O Dr. Araújo por seu lado ficou escarlate de raiva, ainda ontem tinha conseguido pôr as mãos no bombonzinho e já lhe estava a criar problemas… ah se a sua mesa falasse… No dia seguinte Celina meteu baixa e Francisco nunca mais a vira. Supostamente, suicidar-se-ia seis meses depois, após um plano que não lhe correra assim tão bem…

O meu livro - Sem Título (ainda) V

Durante cinco longos meses, Celina, carpiu as suas mágoas fechada no seu quarto. Não saía, não comia não queria falar com ninguém. Como é que era possível? Ela amara-o verdadeiramente, com todo o seu ser, e fora enganada. O Araújo fora o seu primeiro homem… a sua primeira vez… Ele ia ficar com ela e iam ser felizes. Ia ser uma boa mãe para os seus filhos… E, ele, estragou tudo. Enganou-a! E ela tinha de continuar a viver sem ele… não iria aguentar… o melhor era acabar com tudo… Não queria continuar a viver sem ele… queria morrer. Morrer de amor! Iria acabar com a vida e, pelo caminho, com o casamento do Dr. Araújo e a sua queridinha Elisa.
E assim, a vinte e três de Outubro, Celina, escreveu a mais longa carta da sua vida… Despejou lá a sua alma, despiu-se de todas as verdades e deixou-as ali naquelas folhas. Quando encontrassem aquela carta não restaria mais nada da reputação do Dr. Araújo.Bebeu uns horríveis tragos de uísque, saltou para dentro do carro e arrancou furiosamente com a sua carta nas mãos… amarrotada… O rádio gritava uma música qualquer, o seu cérebro em alta rotação… em direcção à ponte… estranhamente não havia trânsito… Fora traída… Ele usara-a… Quem é que ele pensava que era? A sua mulherzinha nunca lhe iria perdoar, tinha a certeza… e ela amara-o tanto… que dor tão grande no peito! Guinou o volante, chiaram os pneus, fechou os olhos, não gritou… um baque, um estrondo e logo a seguir silêncio… tinha morrido! Pensou. Em menos de trinta segundos pensou em tudo… e lembrou-se: Se caiu na água, como é que leriam a sua carta de papel? NÃO! Deitou tudo a perder… morreu em vão! Ele iria ficar feliz com a sua mulher e ela nunca mais existiria… Abriu os olhos… Não morrera, o carro não caíra e a carta ainda estava na sua mão. Estava pendurada na ponte. Podia emendar tudo! Como tinha sido burra…. E riu! Riu muito… riu até lhe faltar o ar. Não precisava morrer… enviaria a carta por correio e continuaria a sua vida. Ia cortar o cabelo, ia pintá-lo – sempre quis o seu cabelo louro – ia esquecê-lo e ia viver. Atrás, chegou um carro… Que bom! Uma ajuda!

O meu novo livro - Sem Título (ainda) VI

Ligaram os máximos… arrancaram na sua direcção… Mas o que é que estão a fazer? O ronco furioso do motor e mais um embate… e aí sim. Celina precipitou-se, dentro do seu carro, com a sua carta na mão em direcção às águas geladas e escuras do rio. Silêncio!
Elisa saiu do seu carro. A pêgazinha ia escapando. Não podia ser! Era o seu casamento que estava em jogo. Espreitou para o rio, estava morta, não havia dúvidas. Tinha que se despachar e voltar para casa. Tinha uma surpresa para o seu marido esta noite. E nada a poderia estragar.

O meu Livro - Sem Título (ainda) VII

Todos os dias, Francisco seguia a mesma rotina. Gostava disso, saber que o minuto seguinte iria ser precisamente igual ao mesmo minuto do dia anterior… e por odiar surpresas, o dia vinte e três de Outubro iria ser o princípio dos piores tempos da sua vida…

Após o seu ritual da manhã, procurou a notícia. Nada! Um dia iriam apanhá-lo, e aí é que ia ser o bonito… chegou à repartição às, precisamente, 08:57, como todos os dias. Mas nada estava como antes… Começou a ficar nervoso, uma ansiedade que lhe tirava as forças dos braços e pernas… O Dr. Araújo não estava sentado à secretária, a mesa que fora outrora da Celina estava agora ocupada por uma rapariga nova. Odiava conhecer pessoas novas. Enervavam-no! E se ela o reconhecesse do intendente? Certamente quereria vingança… A sua secretária não estava milimetricamente arrumada… havia um termo ao lado da sua moldura que ostentava uma fotografia velha da sua querida e falecida mãezinha… um termo amarelo no lugar da sua moldura… e a moldura estava torta… ligeiramente inclinada… Bom dia Dr. Araújo – Conseguiu articular o nosso homem com o olhar fixo naquele termo amarelo… aquilo angustiava-o… – Olá Francisco Bom dia. Apresento-lhe… – Aquele termo amarelo não devia estar ali... – …aqui a nossa nova colaboradora, Andreia. Ela é novinha, está a aprender pelo que conto com a sua ajuda para o que ela precisar. Andreia reparou no olhar fixo de Francisco na sua secretária… – Oh desculpe, pousei o meu termo na sua mesa. Deixe-me tirá-lo… é que não consigo pensar sem café. O nosso homem respirou fundo de alívio, o termo saíra da sua mesa e a sua moldura voltara à posição correcta… tudo estava no devido sítio agora.

O meu Livro - Sem Título (ainda) VIII

O resto do dia correu com normalidade… Essa noite Alfredo iria visitar Lucília, pelo que o nosso homem já sabia que se iria deitar cedo, depois de chegar a casa, jantaria na cozinha, uma refeição rápida, e limparia o seu revólver, outra vez… Um dia iria conseguir realizar o seu plano. Era só reunir coragem… o revólver estava pronto.
Tirando o facto da nova funcionária, tudo continuava normal, calmo, imutável, pelo menos até à altura em que o Dr. Araújo, desligou o telefone, levantou-se da sua cadeira e se dirigiu à secretária do nosso homem… e a partir daí tudo se alterou!
- Oh Francisco, eu, hoje, faço anos de casado. De maneira que vamos fazer uma pequena festa lá em casa… O Francisco está convidado para aparecer.
O nosso homem ficou petrificado. Uma festa? Ele? Detestava festas… um aglomerado de gente que não conhecia, tentando fazer conversa, saber coisas da sua vida… – Oh Dr. Araújo, muito lhe agradeço o convite, mas hoje tenho uma consulta ao fim do dia. E já sabe como são os médicos, não sei a que horas saio de lá. Mas obrigado na mesma. – O Araújo, aliviado – Não tem problema nenhum. Fica para a próxima. – Não gostava de confraternizar com os seus funcionários, de misturar as coisas. Mas a Elisa tinha insistido tanto… no início ainda desconfiou de alguma coisa, mas depois… a sua Elisa? Era perfeita! Como mulher, amiga, companheira, excelente mãe e dona de casa exemplar… Não lhe conseguia apontar um defeito, e às vezes bem tentava para justificar as suas facadazinhas no matrimónio… mas não havia. Como poderia então ele recusar um pedido da sua borboletinha? Ligou-lhe… Tou, tou… como está a minha borboleta? Olha, tira um lugar da mesa que o Francisco não pode ir… diz que tem uma consulta… – Calou-se e desligou o telefone. Levantou-se da sua cadeira, e dirigiu-se novamente a Francisco – A Elisa diz que fica ofendida se não aparecer lá esta noite… faz muita questão… sabe como são as mulheres… vá lá à sua consulta e depois apareça… esperamos por si. – E virou costas antes que ele conseguisse argumentar uma desculpa qualquer. E depois quem enfrentaria a sua Elisa?
Francisco transpirava, começou a sentir-se mal, faltava-lhe o ar, suores frios, a irritabilidade começou a vir à superfície – Mas que raio de insistência é esta? Qual era o objectivo? Será que ela sabia? Fazia questão da sua presença para quê? Eles até já nem davam assim tão bem, pelo menos, não tão bem como quando andaram no liceu… aliás, desde aquela tarde nunca mais estivera a sós com ela…