terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O meu livro - Sem Título (ainda)

Fazia já trinta e dois anos que Francisco tinha alugado o quartinho dos fundos à D. Lucília. Mulher de porte altivo e posses herdadas de seu defunto marido, que Deus o tenha lá em descanso.

Era um quarto simples.
Tinha apenas uma cama de solteiro de ferro branco, a colcha tinha sido feita pela sua avó, e era das poucas coisas que ainda lhe restavam da família… um roupeiro já antigo de portas empenadas feito de mogno dos bons, como já não se fazem, com o espelho manchado pela humidade. Tinha também uns reposteiros de veludo verde-escuro puídos pelo tempo e um tapete coçado sobre o qual repousavam as suas pantufas sempre perfeitamente alinhadas com o rebordo da cama. Por cima da cama um crucifixo, e por baixo do travesseiro um revólver. Ao lado, na mesinha de cabeceira, guardava os remédios para todas as suas maleitas, a bíblia e um baralho de cartas. O candeeiro com abat-jour de vidro era a sua companhia nas noites de insónia. Normalmente coincidiam nas noites em que Alfredo visitava a senhoria e os dois se entregavam aos pecados da carne. Tal era a violência e veemência das interjeições articuladas a custo e entre gritos e gemidos e golfadas de ar que, nessas alturas ninguém dormia naquele prédio da rua estreitinha ali em Campolide. Sobejamente conhecida pelas suas “quenturas” Lucília não se importava nada com os comentários jocosos dos vizinhos… era mulher, era nova, era viúva, tinha desejos e não devia nada a ninguém. E o Alfredo até dava conta do recado. Sem compromissos.
Quando parava a pensar nele, Lucília estranhava o seu hóspede. Nunca dizia uma palavra a mais do que o necessário. Bom dia menina Lucília, Até amanhã menina Lucília, o seu bolo de tangerina está um primor menina Lucília. Funcionário público, sempre muito correcto, muito polido e educado, todas as manhãs lia o jornal com uma ávida atenção que não lhe permitia ouvir mais nada. Nunca se lhe conheceu família, namoradas, amigos ou até mesmo colegas de trabalho… Quando não estava na repartição estava no seu quarto a jogar paciência ou a ler. Lia todos os jornais. Os Natais, passava-os ali, sozinho ou na companhia de Lucília que, por piedade, lá cozia uma posta de bacalhau e umas batatas a mais, fazia um pão-de-ló e aquecia um pouco de vinho tinto com canela… e assim passavam o serão, junto ao aquecedor, os três: ela, ele e o silêncio que já se instalara entre eles havia anos. No entanto, todas as noites, pelo seu aniversário Francisco nunca ficava no seu quarto. Saía, misteriosamente, depois do jantar, com a barba feita de fresco e um intenso cheiro a colónia. Ia às meninas do intendente, e Lucília sabia-o. Já o tinha seguido. Mas isso era lá com ele, afinal um homem também tem as suas necessidades.
O problema era sempre o regresso ao outro dia de manhã...

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